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Leandro Vilar

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

A Pedra de Roseta: a decifração dos hieróglifos egípcios

A Pedra de Roseta consiste num dos grandes marcos para se estudar a história egípcia antiga, embora na prática seu conteúdo como será visto adiante, tratava-se de uma homenagem ao rei Ptolomeu V, mas a grande importância da Pedra de Roseta não está propriamente em seu conteúdo, mas na forma de como ele foi escrito. A homenagem ao rei foi escrita em três alfabetos e em duas línguas. E graças a essas traduções, no século XIX se foi capaz de desvendar a escrita hieróglifica, há muito esquecida pelos próprios egípcios. Com o deciframento dos antigos hieróglifos, tornou-se possível ler tudo o que antes era visto como enigmático, e as portas para a história e os mistérios do Egito Antigo foram abertos de vez. 

Neste texto procurei contar um pouco da história sobre a descoberta e decifração da Pedra de Roseta, e sua importância para o estudo do Egito Antigo, mas também para o início da egiptologia.

A descoberta da Pedra:

No ano de 1799, época na qual o Egito estava sob controle francês, graças a vitória obtida pelo general e cônsul Napoleão Bonaparte em 1798, mesmo assim, os franceses disputavam o Egito com os ingleses e os turcos. Naquele ano, próximo a cidade de Roseta (atual Rashad), localizada a beira do Nilo, ficando a poucos quilômetros de Alexandria; alguns soldados sob comando do lugar-tenente Bouchard, faziam reparos numa antiga fortificação, a qual foi rebatizada com o nome de Forte de São Juliano. Durante as escavações para reparar os alicerces do forte, os soldados encontraram uma estela de granito negro (antigamente se pensava que fosse feita de basalto) tendo 1,14 m de altura, 72,3 cm de largura e 27,9 cm de espessura; pesando cerca de 760 quilos. A estela apresentava sinais de desgaste e dano, talvez tenha sido quebrada ou cortada.

A Pedra de Roseta. Atualmente se encontra no Museu Britânico em Londres.
Ao analisarem a estela descoberta constatou-se que havia inscrições nela. Na época não se soube distinguir claramente tais inscrições, mas depois descobriu-se que três tipos de alfabetos foram usados: hieróglifo, demótico e grego antigo. Napoleão foi avisado sobre tal singela rocha que no início pareceu ser um achado insignificante, mas alguns estudiosos mostraram interesse, pois acreditavam que poderiam traduzir os então desconhecidos alfabetos hieróglifico e demótico a partir do grego. Então Napoleão ordenou comunicar aos estudiosos sobre tal achado e até mesmo deu ordens que cópias em gesso das inscrições fossem enviadas para quem quisesse estudá-las. 

Napoleão o qual possuía admiração pela história egipcía, empreendeu a primeira missão científica francesa ao país das pirâmides e faraós; a Expedição Francesa (1799-1802) seguiu junto a Campanha do Egito (1798-1801), que consistiu numa série de campanhas militares lideradas nos dois primeiros anos pelo próprio Napoleão com intuito de conquistar o Egito, tornando-o a porta de entrada para o Oriente Médio. Mas além de terem seguidos militares para o país, estudiosos também aproveitaram o momento para realizarem suas pesquisas. 

Napoleão observando uma múmia.
"Dentro de um reduzido número de meses (junho de 1798 - setembro de 1802) foram escalpelados todos os aspctos do Egito: flora, fauna, geologia, a natureza das suas águas, de seus poços, sua geografia: levantou-se um mapa, de Assuâ até o Mediterrâneo, transformado posteriormente em um Atlas de cinquenta e uma folhas. Os habitantes foram descritos, estudados os seus costumes, seus tipos físicos, sua música, seus misteres e sua maneira de viver e de trajar, seu sistema de medidas e de moedas; o regime dos turcos e seu sistema fiscal foi objeto de uma exposição demorada assim como as indústrias do país, seu comércio e suas condições sanitárias... Descreveu-se, finalmente, o próprio país, de norte a sul, tendo sido assinalados, desenhados, medidos, todos os monumentos visíveis naquela época, fossem eles faraônicos, cristãos, árabes ou turcos". (SAUNERON, 1970, p. 12-13).

No ano de 1801, os franceses foram derrotados, e acabaram sedendo o controle do Egito para a Inglaterra, ao assinarem o Tratado de Alexandria (1801). Como a Pedra de Roseta na época ainda estava no país, acabou fazendo parte dos espólios de guerra que os ingleses receberam. Por sua vez os ingleses também se interessaram por tal pedra e uma outra gama de objetos antigos, e encaminharam tudo para Londres, para o acervo do Museu Britânico. Embora tenha mudado de dono, os ingleses ainda continuaram a ceder cópias das inscrições para os interessados. 

A decifração do conteúdo:

A partir da leitura do texto em grego descobriu-se que aquela estela quebrada fazia parte de um monumento erigido a honra do rei Ptolomeu V Epifânio (ca. 210 a.C - 181 a.C) o qual governou o país entre 205 a.C a 181 a.C. As inscrições datam do ano de 196 a.C, consistindo numa gloriosa homenagem ao rei por sua generosidade. Se as inscrições não exageraram, as reformas que o rei fez, realmente foram aclamadas pelo povo do Egito. 

Ptolomeu V segundo consta na estela:
  • Diminuiu impostos;
  • Isentou os sacerdotes de pagarem mais caro para poderem assumir o sacerdócio;
  • Realizou doações aos templos;
  • Perdoou dívidas de pessoas que deviam a Coroa;
  • Libertou prisioneiros que haviam ficado muito tempo preso; 
  • Baniu a obrigatoriedade dos sacerdotes em terem que anualmente irem até Alexandria; 
  • Suspendeu o alistamento obrigatório na marinha; 
  • Doou comida e dinheiro para a infantaria, cavalaria e marinha, tornando-os mais bem equipados e remunerados para poderem melhor proteger a nação;
  • Ordenou a construção de canais e barragens para evitar alagamentos durante as cheias do Nilo;
  • Ordenou a punição de rebeldes e criminosos;
  • Isentou os templos de pagarem o imposto do grão e do vinho, para cada lote de terra;
  • Propôs descontos para as multas aplicadas a aqueles que vendiam tecidos finos a Coroa. 
  • Ordenou a construção de templos, santuários e altares, como também a reforma de outros;
  • Realizou oferendas aos deuses e os animais sagrados.
Diante dessa lista de grande realizações, de certa forma contestáveis pelo fato de que em 196 a.C o rei seria um adolescente imaturo, mas provavelmente muito do que foi feito adveio de seus conselheiros e ministros que souberam como bem governar o país. De qualquer forma, Ptolomeu V foi vangloriado e louvado como um deus. E pelo que informa o final do relato, em todos os principais templos do país, haveria uma estela dessa ao lado da imagem do rei.


Moeda de prata com a efígie do rei Ptolomeu V Epifânio.
Embora a estela relate esses feitos atribuídos ao rei Ptolomeu V, no que nos revela ter feito um bom governo, pelo menos até a data que tal homenagem foi prestada, mas como dito anteriormente, a grande importância da Pedra de Roseta não se deve a homenagem prestada pelo bom governo do rei, mas por fornecer uma tradução da escrita hieroglífica e demótica. 

As tentativas de decifrar os hieróglifos:

A inscrição na Pedra de Roseta foi relatada em três escritas diferentes, pois representava particularidades da língua no país. A escrita hieroglífica foi a principal forma de escrita usada no Egito por milhares de anos; os mais antigos hieróglifos datam de pelo menos 3000 a.C. Logo, os hieróglifos tornaram-se a forma de escrita oficial da língua egípcia antiga. Na época de Ptolomeu V, poucos eram aqueles que ainda sabiam ler os hieróglifos, estando sua leitura mais restrita aos sacerdotes e escribas, pois tendo o governo da Dinastia Ptolomaica sido fundado por Ptomoleu I, antigo general de Alexandre, o Grande, o novo governo de origem macedônica, implantou a língua grega no país. 

Logo, os hieróglifos na Pedra de Roseta representavam a escrita tradicional, por sua vez, a língua grega, era o então idioma usado pela Corte ptolomaica e pelo Estado. Não obstante, a terceira escrita usada na estela, é o demótico egípcio, uma escrita que evoluiu dos hieróglifos, tornando-se um sistema letrado mais fácil de ser reproduzido e compreendido. O demótico surgiu por volta do século VII a.C, passando a ser recorrente no Egito pelos séculos seguintes. Alguns estudiosos no passado chegaram a dizer que o demótico era a escrita dos incultos, pois esses não teriam toda a erudição dos sacerdotes e escribas, mas isso é um equívoco. Os próprios sacerdotes passaram a escrever em demótico também. 

As três formas de escrita encontradas na Pedra de Roseta. Da esquerda para direita: hieróglifos, demótico e grego.
Não obstante, antes da descoberta da Pedra de Roseta, houve várias e várias tentativas de outros povos em se tentar compreender os hieróglifos. Os gregos e romanos chegaram a escrever comentários sobre tal sistema de escrita, mas pelos textos que conhecemos hoje, nenhum erudito grego ou romano na Antiguidade conseguiu traduzir os hieróglifos ou tenha deixado algum dicionário ou gramática. Os árabes na Idade Média também tentaram traduzir os hieróglifos, mas não obtiveram sucesso, pelo menos não que saibamos hoje. No entanto, eles fizeram uma gramática copta, uma outra língua egípcia surgida com os cristãos no Egito. 

"Quando o cristianismo triunfou, eram poucos os egípcios ainda capazes de ler os hieróglifos de seus antepassados; dentro em pouco, já ninguém lhes conhecia o segredo. Foi o início de um imenso silêncio que perdurou cerca de quinze séculos, o grane silêncio anunciado pela "profecia" atribuída a Hermes Trismegisto: "Tempo virá em que há de parecer que os egípcios em vão veneraram seus deuses... Estes voltarão ao céu, abandonando o Egito... Então essa terra sacrossanta, pátria dos santuários e dos templos, cobrir-se-á de sepulcros e de mortos. Ó Egito! Egito! de teus cultos restarão apenas fábulas e teus filhos nelas, mais tarde, já nem mesmo acreditarão; so hão de sobreviver palavras gravadas nas pedras narrando tuas piedosas façanhas... Sem deus e sem homens, o Egito não será mais que um deserto". (SAUNERON, 1970, p. 8). 

Pela Idade Moderna, eruditos italianos, franceses, alemãs, ingleses e de outras nações, obtiveram contato com objetos egípcios, pois era época das Grandes Navegações, colonização e do expansionismo mercantil pelo mundo. Logo, os europeus modernos passaram a entrar em contato com povos das Américas, África e Ásia. Ao mesmo tempo, o fascínio gerado pelos relatos de viajantes, começaram a atiçar a curiosidade de alguns homens ricos, os quais passaram a se tornar colecionadores de "relíquias", e assim por volta do século XV surgiram os "gabinetes de curiosidades" ou antiquários. Logo, com a chegada de objetos vindos do Egito, alguns passaram a se interessar em tentar decifrar aquela estranha forma de escrita. 

No século XVII um padre jesuíta alemão de nome Athanasius Kircher (1602-1680), o qual era um filósofo natural, homem de erudição, tentou realizar a decifração de hieróglifos que ele via nos obeliscos em Roma. Kircher não foi o primeiro a tentar tal projeto, mas ficou conhecido na época pelas várias traduções que fez. Os métodos pelos quais ele tentou fazer essa tradução não são totalmente conhecidos, mas se sabe que ele tentou guiar-se pelo alfabeto copta, uma escrita desenvolvida pelos cristãos egípcios, baseada no alfabeto grego. O copta expressava a língua egípcia, a qual Kircher considerava ser a última manifestação de sua forma escrita, pois com a colonização árabe, o Egito passou a falar e escrever nessa língua. Mesmo assim, o copta em seu tempo fosse diferente do egípcio falado séculos antes, pois é preciso lembrar que a língua está em transformação. Logo, por mais que um mesmo idioma seja falado num país, a forma de se falá-lo não será a mesma. O inglês falado hoje na Inglaterra não é igual ao inglês falado na Idade Média, ou o português falado hoje no Brasil, não é igual ao português falado na época do descobrimento no século XV. Embora a intenção de Kircher fosse boa, ele não levou em consideração essa diferença e imbuído por pretensões simbólicas e mistíticas, suas traduções publicadas em alguns de seus livros como Oedipus Aegyptiacus, Lingua aegyptiaca restituta (1643), Obelisci Aegyptiaci (1666), estavam todas erradas, embora que na época outros estudiosos usaram sua pesquisa como base para realizar as suas. 

Pelas décadas seguintes os mais diversos estudiosos tentaram decifrar os hieróglifos, como também a proporem teorias para seu uso e criação, algumas mirabolantes. De qualquer forma o grande erro que todos vinham cometendo desde Kircher era se pensar que os hieróglifos fossem apenas uma escrita ideográfica e não possuísse valor fonético. Devido a essa linha de pensamento, muitos erraram após o outro. 

Na segunda metade do século XVIII o erudito alemão Jörgen Zoega (1755-1809), o qual já vinha a alguns anos estudando o grego e o copta, como também estudando as obras que pretendiam traduzir os hieróglifos, ele publicou um trabalho sobre os obeliscos, intitulado De origine et usu obeliscorum (1797), onde defendia os seguintes pontos: a escrita hieroglífica seria mista, sendo tanto ideográfica quanto fonética. Segundo, os hieróglifos não foram uma escrita restrita apenas ao uso dos sacerdotes, estando apenas ligada a questões religiosas e místicas, ideia essa bastante difundida até então, onde se considerava que apenas os sacerdotes e alguns escribas eram os conhecedores desse saber. Mas Zoega defendia que os hieróglifos fossem usados por outras pessoas para assuntos não religiosos. 

Ele não conseguiu desenvolver mais profundamente seu trabalho, embora que a meta de seu livro fosse abordar a origem e o uso dos obeliscos, como o próprio título em latim deixava bem claro. No entanto, pelo fato de não poder traduzir os hieróglifos encontrados nos obeliscos, seu trabalho não pode ser concluído. 

Posteriormente, com a descoberta da Pedra de Roseta, a comunidade científica europeia passou a saber que tal estela continha a tradução em grego de um texto também escrito em hieróglifo e demótico. A pedra se tornava a chave para decifrar a antiga escrita egípcia. No entanto, não foi uma tarefa nada fácil, mesmo contando com essa grande ajuda. 

No ano de 1802 Antoine-Isaac, barão de Silvestre de Sacy (1758-1838), na época renomado filólogo e linguista, estudando a pedra, conseguiu identificar alguns nomes próprios, comparando os textos em grego e demótico. Posteriormente o orientalista sueco Johan David Ackerblad (1763-1819), também realizou estudos comparando os dois textos, conseguindo identificar outros nomes próprios. Ackerblad constatou que o demótico retratava fonemas parecidos com os vistos na língua grega, e isso poderia ser uma pista para se entender a fonética dos hieróglifos. O problema da hipótese Ackerblad é que o demótico no século II a.C já havia sofrido influência da língua grega, mas na prática em sua origem ele não se assemelhava ao grego. Por tal condição dizer que o grego se assemelhava ao demótico não era exato.


Thomas Young
Com base no trabalho de Ackerblad, o físico, médico, professor, inventor e erudito inglês Thomas Young (1773-1829) interessou-se pelos estudos da Pedra de Roseta. Young era um homem de muitos saberes, poliglota versátil, falava mais de dez línguas; conhecedor da história antiga clássica e oriental, decidiu tentar traduzir os hieróglifos. Usando um alfabeto com 29 caracteres criado por Ackerblad, Young descobriu que 14 caracteres estavam errados, publicando em 1814 sua própria tradução do texto demótico, onde ele conseguiu identificar 86 caracteres. Young afirmou que o erro de Ackerblad foi ter pensado que todas as palavras em demótico fossem fonéticas como no grego, mas na verdade, muitas não eram, embora no que se refere aos nomes próprios ele estivesse certo. No ano de 1818, Young publicou suas pesquisas num artigo intitulado Egypt. Assim como outros, ele acabou ficando em dúvida se o demótico possuiria fonética, ou essa era apenas reservada para os nomes próprios. Ele tentou traduzir os hieróglifos, mas acabou não conseguindo. No entanto, sugeriu em seu artigo que os nomes nos cartuchos aparentavam ser nomes próprios. As duas primeiras décadas do século XIX se encerravam sem grandes avanços na tradução dos hieróglifos. 


A descoberta de Champollion:

Jean-François Champollion tornou-se um nome eternamente ligado a Pedra de Roseta pelo fato de ter sido de sua autoria a decifração dos hieróglifos não apenas contidos na estela, mas da própria escrita hieroglífica egípcia. Todavia, não podemos desmerecer os trabalhos anteriores, pois embora não tenham alcançado o mesmo êxito que Champollion, eles foram necessários para o desenvolvimento dessas pesquisas linguísticas relacionadas ao povo egípcio. Champollion nasceu em 22 de dezembro de 1790 em Figeac, sendo filho do livreiro Jacques Champollion e da dona de casa Jeanne-Françoise Guailleu. Foi o caçula da família. Devido a venda de livros de seu pai, Jean-François logo cedo teve contato com a leitura e as portas que essa proporcionava, embora que necessariamente seu pai não lhe deu muita atenção, devido a ser um comerciante que viajava muito. Champollion cresceu aos cuidados de sua mãe, de seu irmão mais velho Jacques-Joseph e de suas três irmãs, Thérèse, Pétronille e Marie-Jeanne

Em 1801, mudou-se para Grenoc, para viver com seu irmão mais velho e iniciar os estudos escolares, pois até então havia estudado apenas em casa. Mas mesmo essa educação domiciliar foi bastante significativa, pois despertou o interesse dele para a leitura, a história antiga e os idiomas. Aos 16 anos de idade, Champollion já sabia grego, latim, italiano, alemão e inglês. Seu interesse e facilidade em aprender outros idiomas foi essencial para seus estudos futuros. Até o fim da vida ele ampliou os idiomas que conhecia, aprendendo árabe, hebreu, siríaco, caldeu, persa, etc. Tornando-se equiparável a Thomas Young, como um grande poliglota. 

Seu interesse por história oriental antiga, o levou a procurar estudar os idiomas a fim de ler os documentos na língua materna. Muitos dos idiomas que ele aprendeu, os estudou com professores particulares, pagos pelo seu irmão. Já mais velho, mudou-se para Paris onde foi estudar no Còllege de France e depois na École Pratique des Langues Orientales, a fim de se especializar no estudo da linguística voltada para língua orientais, especialmente a língua copta, a qual aprendeu com maestria. Embora o Egito fique na África e no Ocidente, ele era tratado como sendo uma cultura oriental, algo que hoje ainda ocorre nos estudos históricos. 

Em 1809, recebeu a oferta de torna-se professor de história adjunto na Universidade de Grenoble. Bonapartista declarado, Champollion e seu irmão Jacques-Joseph temeram que o pior ocorreria com a França quando Napoleão foi deposto em 1814. Em 1815 a Faculdade de Letras da Universidade de Grenoble foi fechada pelo novo governo, Champollion ficou desempregado, mas ainda conseguiu se manter por alguns meses, dando aulas particulares até a situação piorar em 1816, obrigando ele e seu irmão com a família a regressarem para casa, passando a morar com seu pai alcoólatra e as três irmãs, pois sua mãe havia falecido já nesta época. Foram anos difíceis para a família. Apenas em 1818, Champollion foi readmitido na universidade, retornando para Grenoble, onde se casou com Rosine, mulher que há anos tentava pedir em casamento. 

Tendo voltado a estabilizar a sua vida, Champollion foi retomando os estudos linguísticos, e focando sua atenção nas línguas egípcias. Em 1820 doente e novamente desempregado, mudou-se com a esposa para Paris, indo morar de favor na casa do irmão que conseguiu um trabalho na capital. Curiosamente, as descobertas que ele realizou adveio desse momento no qual ele estava com dificuldades, problemas de saúde e desempregado.

Champollion posteriormente relatou em seus trabalhos que ele preferiu aprender tudo o que conseguiria saber sobre o copta, o qual ele considerava o último estágio da língua egípcia falada e escrita, opinião a qual concordava com Kirchner. A ideia dele era fazer um estudo retroativo. A partir do copta, ele regressaria ao demótico, ao hierático e finalmente aos hieróglifos. Champollion tinha ciência que a escrita e a língua evoluíam, mudavam, transformavam-se, e para compreender essas mudanças entre o sistema de escrita original até o copta, era necessário conhecer essa evolução. 

Entre os anos de 1820 e 1821 chegou a conclusão que o demótico consistia numa simplificação do hierático, o qual por sua vez era uma simplificação dos hieróglifos, pelo menos essa era a tese que ele defendia. Posteriormente seguindo a hipótese de Zoega, Champollion percebeu enquanto estudava o demótico e o hierático, que estes possuíam sinais tanto ideográficos quanto fonéticos, e como ele considerava tais escritas como uma evolução dos hieróglifos cogitou que essa também possuiria sinais fonéticos. 

Para provar sua tese de que os hieróglifos possuíam sinais fonéticos, Champollion isolou um conjunto de hieróglifos que apareciam num cartucho, o qual repetiam-se seis vezes. Comparando a posição dos hieróglifos no texto com a tradução para o demótico e o grego, ele cogitou que aquele nome que se repetia, era o nome do rei Ptolomeu V. Para fazer isso, ele traduziu o nome Ptolomeu que era de origem grega, para o alfabeto copta, e depois para o demótico, hierático até chegar ao que deveria ser a sua forma nos hieróglifos. Embora tenha identificado oito sinais que representariam o nome Ptolomeu (Ptolmiis em egípcio), ele não tinha certeza se estava correto e como seria a forma de leitura.

O nome de Ptolomeu (Ptolmiis) na escrita hieroglífica.
Por não saber a forma de como se lia tais sinais em sequência, Champollion se baseou no modelo comum de se ler da esquerda para a direita, então enumerou cada um dos sinais, e deduziu as possíveis letras que cada um representaria para formar o nome Ptolmiis. Posteriormente ele recebeu a cópia da inscrição de um obelisco recuperado na Ilha de Filis, o qual continha um texto também bilíngue. No texto grego dizia que se tratava do rei Ptolomeu II e de sua esposa Cleópatra III. A partir de seu estudo, reconheceu a similaridade entre os hieróglifos que representavam o nome Ptolomeu II naquele obelisco com os que representavam o nome de Ptolomeu V na Pedra de Roseta, então concluiu que suas deduções estavam certas.

Então passou a estudar o nome de Cleópatra, seguindo o mesmo método anterior feito com o nome Ptolomeu. Chegando ao nome Qliopatrat, ao comparar com a versão contida no cartucho, percebeu que o hieróglifo que representava a letra "T" era diferente do visto no nome de de Ptolomeu. Após estudar aquele problema, ele deduziu que se tratasse de um caractere homófono, ou seja, escrito de forma diferente, mas possuindo o mesmo som, algo como "F" e "PH" ou "SS" e "Ç".


O nome de Cleópatra (Qliopatrat) na escrita hieróglifica.
Após analisar esses dois nomes de origem grega, Champollion conseguiu identificar doze hieróglifos que simbolizavam letras. Então os chamou de fonogramas. Posteriormente em outros estudos ele foi identificando outros tipos de hieróglifos. De qualquer forma, se valendo desse método ele começou a analisar outros cartuchos contendo nomes de origem grega, conseguindo identificar outros hieróglifos e as suas respectivas letras. 

No ano de 1822, após ter traduzido dezenas de nomes e reunido vários hieróglifos que representavam letras e suas variações, ele decidiu traduzir nomes de origem egípcia, conseguindo traduzir os nomes Ramsés e Tutmés. Nomes de importantes faraós. Com tal façanha ele passou a analisar não apenas nomes próprios, mas palavras no geral que fossem formadas por fonogramas, já tendo como referência a classificação dos hieróglifos que havia feito. E no mesmo ano surgiu sua primeira grande obra sobre seu trabalho. 

Representação dos hieróglifos fonogramas.
No ano de 1822, já tendo decifrado em parte a escrita hieroglífica com base na tradução de nomes próprios, Champollion redigiu Lettre M. Dacier... Relative a l'alphabet des hieroglyphes phonétiques, emplóyes par les égyptiens pour inscrire sur leurs monuments le titres, les noms et les surnoms des souverains crecs et romains. Com a publicação desse livro, ele ganhou fama internacional, despontando como o descobridor dos hieróglifos. De fato, é de seu mérito o primeiro grande passo para se compreender os hieróglifos, mas como ele deixou sugerido no título da obra, esse primeiro livro abordava sua pesquisa referente ao estudo dos hieróglifos fonéticos. 

Frontispício de Lettre M. Dacier... Relative a l'alphabet des hieroglyphes phonétiques de Jean-François Champollion (1822).
Como o próprio título indica, originalmente o texto consistiu numa carta enviada por Champollion ao secretario da Academie des Inscriptions et Belles Lettrres em Paris, Bon-Joseph Dacier. Nessa extensa carta, posteriormente transformada em livro, Champollion relatava ao secretário sua descoberta e seu método de estudo. A obra depois que foi publicada, ainda no mesmo ano foi traduzida, tornando-se a principal referência na área. Muitos pesquisadores ao tomarem conhecimento da descoberta de Champollion passaram a usar seu método para desenvolver outras pesquisas, pois é importante lembrar que muitos outros hieróglifos ainda não haviam sido traduzidos.


Enquanto outros estudiosos passaram a desenvolver suas pesquisas, o próprio Champollion no restante da sua vida continuou a estudar os hieróglifos, escrevendo uma gramática e um dicionário. No entanto, devido a falta de fontes para abordar a obra de Champollion, preferi me restringir a esse primeiro momento de seus estudos, no que resultou na Carta a M. Dacier.

Em 1824 ele publicou Précis du systeme hiéroglyphique des Anciens Egyptiens, consistindo num estudo acerca dos conceitos fundamentais da escrita hieroglífica. No ano de 1826 ele recebeu a oferta de emprego para se tornar diretor da coleção egípcia no Museu do Louvre. Passou os anos seguintes organizando as exposições sobre temática egípcia. 

No entanto, sua grande realização dessa fase de reconhecimento, se deu no ano de 1828, quando após solicitar ao rei da França, Carlos X e ao grão-duque da Toscana, Leopoldo II, ambos os nobres firmaram um acordo, e assim foi criada a Expedição Franco-Toscana (1828-1829), liderada por Champollion, com a missão de ir ao Egito e realizar uma longa pesquisa de campo. Era sonho de Champollion conhecer o país, e finalmente pôde realizá-lo. Na ocasião ele contou com a companhia do italiano Ippolito Rosellini (1800-1843), o qual havia se tornado seu discípulo preferido, e o primeiro grande nome da egiptologia na Itália.

Pintura retratando a Expedição Franco-Toscana ao Egito, diante das ruínas em Karnak. Ao centro, o homem barbudo e sentado é Jean-François Champollion, ao seu lado, o homem que segura uma folha de papel é Ippolito Giuseppe.
Champollion passou 18 meses trabalhando no Egito, ao retornar sua saúde estava novamente frágil, mas isso não o impediu de se dedicar aos seus estudos. Em 1831 concluiu sua Grammaire égyptienne (Gramática egípcia). Como também deixou apontamentos para seu Dictionaire égyptien en écriture hiéroglyphique. No entanto, devido aos seus problemas de saúde, Champollion faleceu em 4 de março de 1832, de um ataque cardíaco, morrendo aos 41 anos. No ano de 1831 havia sido nomeado professor de arqueologia egípcia do Collège de France, cargo que não conseguiu exercer direito, devido a sua saúde ter-se agravado.

Sua gramática e seu dicionário foram publicados respectivamente em 1836 e 1841, contando com o apoio de seu irmão Jacques-Joseph e de seu discípulo Ippolito Rosellini, o qual lhe acompanhou na expedição ao Egito. Champollion é considerado por alguns como o "Pai da Egiptologia", por causa da sua descoberta que permitiu a primeira vez a possibilidade de se entender o que estava escrito nos papiros, monumentos e objetos, desse ponto em diante a egiptologia e a egiptomania se iniciaram.

NOTA: No Egito, Champollion reuniu uma grande quantidade de objetos com inscrições hieroglíficas, mas também mandou fazer desenhos de hieróglifos encontrados em monumentos. Esse material de campo ajudou a ampliar suas fontes, como também ele aplicou seu conhecimento na tradução de tais escritos, passando a compreender o que estava escrito nas paredes de templos, em obeliscos, estátuas, papiros, etc. 
NOTA 2: Ippolito também foi responsável por coordenar as cópias e desenhar muitas das inscrições hieroglíficas, tendo reunido um gigantesco acervo que resultou na sua coleção em 14 volumes intitulada I monumenti dell'Egito e della Nubia (1832-1844). Ele também cedeu parte do acervo que trouxe do Egito para o Museu de Florença, criando a primeira exposição egipcía na Itália.
NOTA 3: O governo egípcio por várias vezes tentou negociar com o governo inglês para reaver a Pedra de Roseta e outros artefatos para sua terra natal. No entanto, os ingleses recusaram tais acordos. 
NOTA 4: Embora Champollion tenha se dedicado a estudar os hieróglifos em 1821, ele desde seus 18 anos já havia iniciado tais estudos, embora não manteve uma continuidade neste meio tempo. A primeira vez que teve contato com os hieróglifos, ele tinha dez anos, onde um primo seu que serviu na Campanha do Egito, lhe mostrou uma cópia das inscrições da Pedra de Roseta. Aquilo o fascinou profundamente.
NOTA 5: Os hieróglifos podem ser classificados como ideográficos, fonogramas, nomofonogramas, duofonogramas, triofonogramas, pseudo-vogais, determinativos, complementares, etc.

Referências Bibliográficas:
BUDGE, E. A. Wallis. The Roseta Stone. London, British Museum, 1913. 
CERAM, C. W. Deuses, túmulos, e sábios: o romance da arqueologia. Tradução de João Távora. São Paulo, Biblioteca do Exército-Editora/ Edições Melhoramentos, 1971.

CERAM, C. W. O mundo da arqueologia. Tradução de Octávio Mendes Cajado. 2a ed, São Paulo, Companhia Melhoramentos, 1973. 
OLIVEIRA, Francis Lousada Rubiini de. A Escrita Sagrada do Egito Antigo. Dicionário Hieróglifo-Português. Ibitirama/ES, edição do autor, 2008.
ORTIZ, Airton. O Egito dos Faraós: da antiga Mênfis à Moderna Cairo: 5.000 anos de aventuras. Rio de Janeiro, Record, 2011. 
SAUNERON, Serge. A egiptologia. Tradução de Heloysa de Lima Dantas. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1970.
SILLIOTI, Alberto. Egito. Tradução de Francisco Manhães. Barcelona, Ediciones Folio S. A, 2006.


2 comentários:

Unknown disse...

É fascinante tomar conhecimento de como os estudiosos se empenharam em trazer a compreensão da história e cultura das civilizações antigas. Tais individuos nos inspiram a buscar sempre e cada vez mais o conhecimento.

lfpadilla5 disse...

Excelente estudo, aprendi muito com os relatos lidos, no ginasio (1955) aprendi de forma informativa sobre a pedra da roseta, muito superficial nos livros da epoca, aqui foi de forma completa o entendimento, obrigado pelo estudo, parabens pela obra.