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Leandro Vilar

domingo, 28 de dezembro de 2014

A invenção do Natal



A INVENÇÃO DO NATAL


Dra. Maria Luísa Leal de Faria
Universidade Católica
Sociedade Científica


O título deste artigo indicia, desde logo, duas limitações: em primeiro lugar, falar do Natal sob o ângulo das representações simbólicas, daí a palavra "invenção"; e depois situar essas representações num contexto específico, o século XIX inglês. No entanto, todos os símbolos comportam conteúdos, e os símbolos do Natal estarão, como espero demonstrar, associados a valores morais transmitidos ao longo de dois mil anos; e depois os símbolos que se popularizaram ao longo do século XIX em Inglaterra disseminaram-se pelo mundo e continuam a representar o Natal, e o espírito do Natal, nas sociedades contemporâneas. 

Primeiro cartão de boas festas, o qual inaugurou a tradição dos cartões natalinos e de ano novo. Foi desenhado por John Callcott Horsley, para presentear seu amigo Henry Cole em 1843. Inglaterra.
Não irei, pois, falar do Natal português, nem do presépio, a mais directa representação do Natal na cultura cristã. Por estranho que pareça, o presépio está ausente da cultura inglesa, certamente em consequência dos ímpetos iconoclastas da Reforma. Mas a ausência de representação física da Natividade não exclui a celebração do Natal como um dia, e um período do ano, especialíssimo, um tempo de festa, de solidariedade e de memória. Serão estas as três linhas dominantes desta apresentação: a festa, com os rituais que lhe estão associados na época de Natal; a solidariedade, como hoje dizemos, mas que no século XIX poderia ser designada, à moda antiga, como a boa caridade cristã; e a memória, a convocação dos entes queridos já desaparecidos para a nossa mesa, para a partilha simbólica da celebração do nascimento de Cristo, tornando presente a ausência.

Tornou-se hábito dizer que o Natal inglês foi inventado por Charles Dickens. É certo que Dickens contribuiu decisivamente para instalar as celebrações do Natal no imaginário colectivo inglês com os contornos que, ainda hoje, existem. Mas importa não esquecer que o Natal já era, havia séculos, tempo de celebração, e que já nas primeiras décadas do século XIX as festas de Natal tinham começado a ser objecto de representação na pintura, e de reflexão na componente da tradição. Várias publicações reúnem os usos, os costumes, as tradições de celebração, e começam a fixar rituais que importa não esquecer numa época de instabilidade e mudança, como era sentido o século XIX, sobretudo nas primeiras décadas.

Os autores contemporâneos dividem-se entre aqueles que atribuem a Dickens e ao período vitoriano a construção de todo um conjunto de rituais e celebrações que se prolongam até hoje, aqueles que perspectivam a história das celebrações do Natal a partir das tradições cristãs medievais, e outros, ainda, que insistem nas adaptações dos cultos pagãos aos cristãos, ao longo dos séculos.3 Não pretendo fazer uma revisão de literatura sobre a história do Natal, e confesso que irei adoptar, nesta apresentação, um ponto de vista mais próximo da "invenção da tradição", embora procurando, também, recordar traços das anteriores tradições nos novos costumes.

Ilustração retratando a árvore de natal no Castelo de Windsor, Inglaterra. Na imagem pode-se ver a rainha Victoria e sua família. 1841.
O papel de Dickens não pode ser minimizado. O seu mais recente e maior biógrafo, Peter Ackroyd, refere a este propósito:

"He did not invent Christmas … as the more sentimental of his chroniclers have suggested. … But Dickens could be said to have emphasized its cosy conviviality at a time when both Georgian licence and Evangelical dourness were being questioned. … What Dickens did was to transform the holiday by suffusing it with his own particular mixture of aspirations, memories and fears. He invested it with fantasy and a curious blend of religious mysticism and popular superstition so that, in certain respects, the Christmas of Dickens resembles the more ancient festival which had been celebrated in rural areas and in the north of England".4

Mas um episódio narrado no periódico The Nineteenth Century em 1907 evoca a associação de Dickens ao Natal na imaginação popular. Conta o autor, Theodore Watts-Dunton, que ouviu na rua, no dia 9 de Junho de 1870, uma rapariguinha exclamar, "O quê? Dickens morreu? Então o Pai Natal também vai morrer?"5

Esta associação estreita entre Dickens e o Natal decorre de um conjunto de publicações que se tornaram extraordinariamente populares ao longo de várias décadas, ainda em vida de Dickens, e continuam a manter, hoje ainda, muito da sua magia como expressões do Natal. A mais conhecida é, sem dúvida, A Christmas Carol. Mas muitas outras, que se lhe seguiram, contribuíram para reforçar a expectativa de que todos os anos, por altura do Natal, Dickens iria presentear o público com uma nova Christmas Story, criando assim uma tradição, reforçada pelo apelo das suas narrativas, pela dramatização de algumas, pelas leituras públicas de várias. Sem querer pormenorizar demais, bastará dizer que, depois da publicação de A Christmas Carol em 1843, Dickens publicou novos contos em 1844, 45, 46 e 48.

Não publicou em 1847, com grande pena, e reconhecendo já que iria "deixar um vazio junto às lareiras de Natal que deveria preencher".6 A partir de 1850 passou a utilizar as publicações periódicas que criara e lançara para nelas dedicar números especiais ao Natal. No famoso semanário Household Words publicou, na semana de Natal de 1850, uma fabulosa narrativa sobre a árvore de Natal, a que voltaremos. Continuou a publicar números especiais de Natal na sucessora de Household Words, All the Year Round, a partir de 1859. Em 1870 fez, ainda, uma leitura pública de A Christmas Carol.

Os contos de Natal de Dickens não surgem de repente. Já em 1838 o pintor escocês Daniel Maclise pintara um grande quadro chamado Merry Christmas in the Baron’s Hall, onde representara o barão, a sua família e todos os seus dependentes unidos nas festividades de Natal. Maclise pertencia ao círculo de amigos de Dickens, foi autor de várias ilustrações das suas obras, de um dos seus retratos mais conhecidos, bem como também de um desenho em que representa Dickens a ler um dos seus contos de Natal, The Chimes.

Nos Estados Unidos, Washington Irving, que Dickens Muito apreciava, tinha publicado, nos anos vinte, The Sketch Book of Geoffrey Crayon, Gent., que também terá contribuído para inspirar Dickens nas suas evocações das festas de Natal domésticas, cheias de bom humor, brinquedos e brincadeiras, música e guloseimas, adultos e crianças rejubilando no espírito de Natal.

Impossível de esquecer era o livro The Book of Christmas: Descriptive of the customs, ceremonies, traditions, superstitions, fun, feelings and festivities of the Christmas Season, publicado em 1837 por T. K. Hervey, com ilustrações de outro amigo de Dickens e ilustrador de várias obras suas também, Robert Seymour. Outras publicações, ainda da década de trinta, são especificamente dedicadas ao Natal, enquanto festa de família e festa tradicional: The Humourist, a Companion for the Christmas Fireside, de W. H. Harrison, publicado em 1831 e 1832, e Selection of Christmas Carols, Ancient and Modern, de William Sandys em 1833.

Mas ninguém melhor que Dickens captou o espírito de Natal nas suas diversas facetas, começando pelos aspectos festivos. Por isso falemos na festa e nos símbolos que a acompanham. O presépio, fundamental nos lares católicos, não tinha expressão nas casas protestantes, como já referi. O lugar de destaque, nas decorações de Natal, passou a ser a árvore de Natal.

Na peça intitulada "A Christmas Tree", publicada a 21 de Dezembro de 1850 em Household Words, Dickens chama-lhe "that pretty German toy"7, "aquele bonito brinquedo alemão". Hoje é costume dizer que a árvore de Natal foi trazida da Alemanha para Inglaterra pelo Príncipe Alberto, em 1841, e que depois se vulgarizou. Parece, no entanto, que terá sido a avó da Rainha Vitória, a Rainha Charlotte, quem primeiro terá adaptado a árvore alemã às festas de Natal inglesas. A Governanta do Castelo de Windsor, a Hon. Georgina Townshend, recordava, desse tempo:

"The Queen [Charlotte] entertained the children here, Christmas evening, with a German fashion. … A fir tree, about as high again as any of us, lighted all over with small tapers, several little wax dolls among the branches in different places, and strings of almonds and raisins alternately tied from one to the other, with skipping ropes for the boys, and each bigger girl had muslin for a frock, a muslin handkerchief, a fan, and a sash, all prettily done up in the handkerchief, and a pretty necklace and earrings besides. As soon as all the things were delivered out by the Queen and the Princesses, the candles on the tree were put out, and the children set to work to help themselves."8

Mas o Príncipe Alberto contribuiu decisivamente para instalar na imaginação da sociedade uma ideia de domesticidade que se colou ao ideal do Natal em família.

"At Christmas time he could be seen building snowmen twice as tall as himself, playing ice hockey, driving a sledge across the snow and setting up a Christmas tree. Each Christmas, the chandeliers were taken down in the Queen’s sitting room at Windsor where trees, hung with candles and toffees, took their place; the dining room tables were piled up with food and on the sideboard stood an immense baron of beef. In the Oak Room there was another Christmas tree surrounded by presents for the members of the household, and on each present was a card written by the Queen. ‘Everything’, so the Prince told his brother, ‘was totally German’."9

Toda a literatura inglesa sobre o Natal refere o papel da família real como decisivo no teor das festividades. Gravuras publicadas em periódicos de grande circulação mostravam cenas íntimas da família real, reunida em torno da árvore de Natal, que funcionaram como exemplo para as famílias de todas as classes sociais. As decorações de Natal, com o tradicional mistletoe e azevinho tornaram-se cada vez mais elaboradas, e as donas de casa tornaram-se cada vez mais exigentes nestas matérias.10 Mas a mais fabulosa árvore de Natal é a que Dickens descreve, em "A Christmas Tree":

"The tree was planted in the middle of a great round table, and towered high above their heads. It was brilliantly lighted by a multitude of little tapers; and everywhere sparkled and glittered with bright objects. There were rosy-cheeked dolls, hiding behind green leaves; there were real watches (with movable hands, at least, and an endless capacity of being wound up) dangling from innumerable twigs; …"11

A descrição de Dickens estende-se ao longo de duas dezenas de páginas, repletas de evocações de outros Natais, de objectos que desencadeiam memórias, de histórias da sua infância, onde não podiam faltar os inevitáveis "ghosts", de episódios que falam ao sentimento e à imaginação. E também aqui regressaremos, dentro em pouco.
Se a árvore de Natal teve origem alemã, já os cartões de Boas Festas foram uma invenção completamente inglesa. O primeiro cartão desejando "Merry Christmas" foi concebido por Sir Henry Cole em 1843, e representava, como referiu Asa Briggs: "a family Christmas dinner with three generations present, although there was no tree, another Victorian innovation, in this case imported from Germany".12 Pode ver-se, também, dos dois lados, desenhos que representam a caridade, com cenas de doação de alimentos e vestuário aos pobres. Diz-se que Sir Henry Cole teve esta ideia por ser preguiçoso no envio de cartas de Boas Festas.

Mas é certo que inventara, três anos antes, o penny post e, graças ao novo sistema de correios, o cartão que inventou foi um êxito, e vendeu logo mais de 2000 exemplares a um xelim cada, o que era, apesar de tudo, relativamente caro. Com novas reduções no preço dos correios (half-penny post), e com novas tecnologias de impressão a cores, rapidamente o cartão de Boas Festas se tornou acessível a todos. Em 1880 a indústria de cartões de Boas Festas era altamente lucrativa, tendo sido impressos, nesse ano, mais de 11 milhões de cartões.

A comemoração do Natal não dispensava um jantar festivo. O peru, que hoje associamos ao jantar de Natal, foi também uma invenção vitoriana. Antes, era sobretudo o ganso assado que constituía o prato de resistência. É, ainda, um modesto ganso que Bob Cratchit consegue comprar para o jantar de Natal da família e que, não obstante, faz as delícias de todos.

"There was never such a goose. Bob said he didn’t believe there ever was such a goose cooked. Its tenderness and flavor, size and cheapness, were the themes of universal admiration. Eked out by apple-sauce and mashed potatoes, it was a sufficient dinner for the whole family; indeed, as Mrs. Cratchit said with great delight (surveying one small atom of a bone upon the dish), they hadn’t ate it all at last!"13

Mas a redenção de Mr. Scrooge leva-o a mandar comprar para os Cratchit um peru, tão grande que era do dobro do tamanho de Tiny Tim: "It was a Turkey! He never could have stood upon his legs, that bird. He would have snapped’em short off in a minute, like sticks of sealing-wax"14, exclama o narrador. E Mrs. Beeton, a inesquecível autora do extraordinário livro Mrs. Beeton’s Book of Household Management, publicado em 1861, diz, a propósito da maneira de trinchar um peru:

"A Christmas dinner, with the middle classes of this empire, would scarcely be a Christmas dinner without its turkey; and we can hardly imagine an object of greater envy than is presented by a respected portly paterfamilias carving, at the season devoted to good cheer and genial charity, his own fat turkey, and carving it well."15

Ainda de acordo com Mrs. Beeton, em Dezembro a principal tarefa da dona de casa é preparar "the creature conforts" para todos os que nos estão próximos e nos são queridos, a fim de enfrentar o Natal com semblante feliz, espírito satisfeito, e dispensa cheia. Mas também caberá à dona de casa a importante tarefa de preparar o pudim: "in stoning the plums, washing the currants, cutting the citron, beating the eggs, and MIXING THE PUDDING, a housewife is not unworthily greeting the genial season of all good things".16

O Christmas Pudding era, pois, outra iguaria indispensável. Já na ilustração de Seymour para o Christmas Book de Hervey está representado com destaque. Mrs. Beeton dá receitas pormenorizadas, mas Dickens, como sempre, capta a emoção e excitação do pudim flamejante, mesmo numa casa modesta como a dos Cratchit:

"Mrs Cratchit left the room alone -- too nervous to bear witnesses -- to take the pudding up and bring it in... Hallo! A great deal of steam! The pudding was out of the copper which smells like a washing-day. That was the cloth. A smell like an eating-house and a pastrycook's next door to each other, with a laundress's next door to that. That was the pudding. In half a minute Mrs. Cratchit entered -- flushed, but smiling proudly -- with the pudding, like a speckled cannon-ball, so hard and firm, blazing in half of half-a-quarter of ignited brandy, and bedight with Christmas holly stuck into the top."17

O efeito produzido por A Christmas Carol teve impacto nos mais inesperados sectores da sociedade inglesa. É impossível resistir a relatar o episódio do Natal de 1843 em casa dos Carlyles, contado por Jane Carlyle em carta à sua sobrinha, onde refere que Carlyle, cuja constituição nervosa tinha sido excitada por "visions of Scrooge", foi tomado por: "a perfect convulsion of hospitality, and has actually insisted on improvising two dinner parties with only one day between"18.

Numa casa gerida com a maior parcimónia como a dos Carlyles, com Thomas Carlyle a sucumbir constantemente a ataques de dispepsia e a consumir alimentos mais que sensaborões, a preparação do peru para o segundo jantar foi uma aventura, que Jane narra com irresistível sentido de humor.19 Mas foi um êxito, numa refeição composta adicionalmente por sopa de lebre, carneiro estufado, pudim de pão e empadas.

Ainda no Natal de 1843, Jane e Thomas Carlyle vão a uma festa, dada por Mrs. Macready, organizada por Dickens e John Forster, que evoca quase literalmente a festa de Natal dos Fezziwigs em A Christmas Carol.20 Jane conta que Dickens fez truques de magia21, e conta como Thackeray e outros dançavam como Maenades, como Dickens lhe pediu, de joelhos, uma valsa, que ela recusou, mas em compensação como conversou "the maddest nonsense" com Dickens, Forster, Thackeray e Maclisle. E conta ainda como, depois da ceia, quando: "we were all madder than ever with the pulling of crackers, the drinking of champagne, and the making of speeches, a universal country dance was proposed – and Forster, seizing me round the waist, whirled me into the thick of it, and made me dance!!"22

Na festa de Natal dos Macreadys Jane Carlyle bebeu champagne. Mas as bebidas mais comuns, em dias de festa, entre as classes menos abastadas eram o Negus23 ou o Bishop24, mencionados em A Christmas Carol, ou ainda o punch quente que, de acordo com Mrs. Beeton era universalmente bebido entre as classes médias no princípio do século, mas que fora sendo gradualmente substituído por vinho.25

As festas com música e dança, os cânticos de Natal, muitos deles compilados por William Sandys, cantados por pequenos grupos na rua, chamados "Waits", começaram também a tornar-se tradição de Natal. As festas de família envolviam, além dos comes e bebes e dos presentes, jogos de cabra-cega, charadas, pequenas representações, juntando adultos e crianças, familiares próximos e distantes, à volta da mesa e da lareira.

Mas o ambiente festivo que envolvia as classes médias estava também associado a um sentimento de caridade que se acentuava no Natal. É bom não esquecer que a década de quarenta foi chamada de "hungry forties", por ter visto chegar a extremos antes impensáveis a miséria das chamadas classes trabalhadoras nas cidades industriais e em Londres. Bastará ler a obra de Henry Mayhew London Labour and the London Poor, publicada pela primeira vez em 1851-2, para ter um quadro completo da miséria vivida nas ruas de Londres.

Mas a pobreza envergonhada ou simplesmente pobreza de empregados de escritório, com famílias numerosas, é objecto da compaixão de Dickens. A Christmas Carol é, talvez, o melhor exemplo do espírito de Natal. Só para recordar aos que não se lembram, conta a história do Sr. Scrooge, avarento, misantropo, egoísta, incapaz de um gesto de simpatia pelos outros que, na véspera de Natal, é visitado por vários "ghosts" que o levam a um abrir de olhos para os outros, tipificados em Bob Cratchit, seu empregado de escritório, e na família Cratchit, de que faz parte uma criança com problemas de desenvolvimento motor, Tiny Tim.

A mensagem de Dickens, neste e em muitos outros textos, é a de que fazer bem aos outros também nos faz feliz. E o Natal é a época do ano em que mais se notam as diferenças entre os que podem celebrar em família e aqueles que são pobres, sós e abandonados. O espírito de Natal de Dickens não passa só pela ajuda material. Passa, sobretudo, pela intensificação dos sentimentos que definem a nossa humanidade: olhar para os outros e vê-los, realmente; cultivar gestos de aproximação aos outros em que se transmite alegria; proporcionar pequenos prazeres que têm mais o valor simbólico do gesto do que o valor material do donativo. A alegria de quem dá é tão grande como a de quem recebe.

E a mensagem de Natal de Dickens pode ser vista como a mensagem para toda a chamada (por Carlyle) "the Condition of England Question": numa Inglaterra dividida entre ricos e pobres, o que fazer para diminuir o fosso que os separava, o que fazer para extinguir o sentimento de revolta e de injustiça sofrido pelos mais pobres? Dickens, fervoroso admirador de Carlyle, entende, como este, que será necessário um "change of heart", uma mudança de atitude, de ambas as partes, que permita virem ao de cima os valores do amor, da bondade, da solidariedade, da generosidade, do perdão e da verdade, anulando o egoísmo, a avareza, a crueldade, o rancor e a mentira. É um espírito cristão, de amor ao próximo, que constantemente percorre as suas narrativas.

No final de "A Christmas Tree" Dickens escreve que ouve um murmúrio passar entre os ramos da árvore que diz: "This, in commemoration of the law of love and kindness, mercy and compassion. This, in rememberance of Me".26

O espírito cristão do Natal está sempre presente nos textos de Dickens. À medida que os anos passam, estes textos começam, também, a acentuar um outro traço: associar às celebrações de Natal os ausentes, ou os que já partiram desta vida. É a memória da sua cunhada, que morrera em 1837, com 17 anos, que inspira as últimas reflexões de "A Christmas Tree". Mas a memória, como faculdade formativa do caracter aparece também, numa história de Natal intitulada "The Haunted Man and the Ghost’s Bargain. A Fancy for Christmas Time", publicada em 1848.

Aqui, num pacto com o seu próprio fantasma, um cientista, de nome Redlaw, renuncia às suas memórias, que eram fonte de sofrimento. Deixa de sofrer com elas, mas perde ao mesmo tempo toda a capacidade de simpatia para com os outros, de generosidade e de amor. Pior, ainda, contamina todos aqueles em quem toca com a mesma perda de memória. E os efeitos são devastadores: pessoas excelentes ficam invejosas, descontentes com a sua sorte, revoltadas por não terem mais. Dickens está a dizer-nos que o sofrimento é parte integrante da formação do bom carácter, e que é preciso aprender a perdoar.
Perdida a memória do sofrimento, perde-se também a generosidade e a alegria, que se constroem na adversidade. Mas vai mais longe ainda, na extrapolação que faz da catástrofe individual que será a perda da memória, para alertar para uma catástrofe nacional bem possível e bem presente. Introduz na narrativa uma criança em estado animalesco, selvagem, hostil a tudo e a todos. O espírito que, na hora da redenção, aparece ao cientista, diz-lhe que essa criança é a última e mais completa ilustração de uma criatura humana desprovida de quaisquer memórias, como aquelas a que o cientista renunciou. E acrescenta:

"No softening memory of sorrow, wrong or trouble enters here, because this wretched mortal from his birth has been abandoned to a worse condition than the beasts, and has, within his knowledge, no one contrast, no humanising touch, to make a grain of such a memory spring up in his hardened breast. All within this desolate creature is barren wilderness. All within the man bereft of what you have resigned, is the same barren wilderness. Woe to such a man! Woe, tenfold, to the nation that shall count its monsters such as this, lying here, by hundreds and by thousands."27

E prossegue, acentuando o horror que espera uma nação em que se multipliquem as crianças que chegam a adultos vazias de sentimentos e de memórias, resultado da indiferença social. Por isso o cientista, depois de compreender o alcance do que fizera, e de recuperar a memória graças ao exemplo da mais extraordinária generosidade – "the teaching of pure love" – por Milly, uma simples dona de casa, cai de joelhos e agradece a Deus. E assume a missão de tomar conta da criança selvagem e hostil:

"Then, as Christmas is a time in which, of all times in the year, the memory of every remediable sorrow, wrong, and trouble in the world around us, should be active with us, not less than our own experiences, for all good, he laid his hand upon the boy, and, silently calling Him to witness who laid His hand on children in old time, rebuking, in the majesty of His prophetic knowledge, those who kept them from Him, vowed to protect him, teach him, and reclaim him."28

O espírito cristão de Dickens percorre todos os seus contos de Natal. A presença de Jesus é muitas vezes evocada, como Aquele que ensina e que cura. Como Tiny Tim dizia, Jesus fez os mendigos aleijados andarem, e os cegos verem. E a preocupação de Dickens como pai, em ensinar a vida de Jesus aos seus filhos levou-o a escrever, em 1849, um livro que intitulou The Life of Our Lord, que nunca quis que fosse publicado.29 O parágrafo inicial demonstra, se dúvidas houvesse, quanto o nascimento e a vida de Cristo eram fundamentais no conceito de vida, de educação e de formação de Charles Dickens:

"My dear children, I am very anxious that you should know something about the History of Jesus Christ. For everybody ought to know about Him. No one ever lived, who was so good, so kind, so gentle, and so sorry for all people who did wrong, or were in anyway ill or miserable, as he was. And as he is now in Heaven, where we hope to go, and all to meet each other after we are dead, and there be happy always together, you never can think what a good place Heaven is, without knowing who he was and what he did."

Ao deliciarmo-nos com as descrições dos convívios de Natal de Dickens, com a exuberância das iguarias descritas, a alegria das festas, a generosidade dos presentes trocados, a animação da música, a decoração da árvore de Natal, não podemos deixar perceber o poder que estas narrativas, ao longo de décadas, exerceram na imaginação colectiva. Enraizaram nela uma versão festiva do Natal, e transformaram em práticas generalizadas hábitos e comportamentos que passaram a ser vistos como tradicionais. Mas o Natal de Dickens tem também o lado do amor ao próximo, da caridade cristã, tornada sempre presente e viva pela memória do nascimento de Jesus, de Deus feito homem.

E, como muitas vezes acontece nas histórias que acabam bem, as personagens das suas histórias reúnem-se, no final, à volta da mesa do jantar de Natal, para celebrar a harmonia, o amor e a paz.

The Christmas Dinner in the Great Hall. Plate 16, Charles Dicken's, The Haunted Man. Ilustração para o livro de Charles Dickens, onde se retrata a Ceia de natal no Grande Salão.

NOTAS:  

1 Maria Luísa Leal de Faria Geraldes Barba é professora catedrática da Faculdade de Ciências Humanas e foi Vice-reitora (2004-2012) da Universidade Católica Portuguesa. É Doutorada e Agregada em Cultura Inglesa pela Faculdade de Letras (Univ. de Lisboa) onde leccionou desde 1972 assim como na Universidade Católica Portuguesa, onde coordenou a área de Ciências da Comunicação (2000- 2002) e continua a leccionar em cursos de doutoramento e mestrado da FCH. Desempenhou diversas funções académicas na Fac. de Letras da Universidade de Lisboa, (Vice-presidente do Conselho Científico; Coordenadora do curso de Estudos Europeus; Presidente do Depto. de Estudos Anglísticos e Directora do Instituto de Cultura Inglesa). Pertence à direcção do Centro de Estudos Anglísticos, onde dirige uma linha de investigação. Foi membro da Comissão Científica do Senado da Univ. de Lisboa; da Assembleia de Representantes da Fac. de Letras; presidente da Comissão Pedagógica do Depto. de Estudos Anglísticos e membro do Conselho Directivo da Fac. de Letras. Foi Sub-directora Geral do Ensino Superior, Coordenadora Nacional do Programa Língua e do Programa Socrates, membro do Conselho Consultivo da CEPES-UNESCO, membro do Júri Nacional do Prémio D. Diniz, e membro de uma Comissão de Especialistas no âmbito do Ministério da Ciência e do Ensino Superior (1995-2005). Tem diversas publicações sobre temáticas de Estudos Vitorianos, Estudos de Cultura e A Ideia de Universidade. É membro de diversas sociedades científicas nacionais e estrangeiras, (Sociedade Científica da UCP, Associação Portuguesa de Estudos Anglo-Americanos, European Society for the Study of English, Carlyle Society, English Speaking Union). É titular da Ordre des Palmes Académiques. É membro da direcção da Associação D. Pedro V, uma associação de solidariedade social.
2 Uma versão deste texto foi apresentada à Faculdade de Ciências Humanas em 18 de Dezembro de 2013.  
3 A obra de Mark Connelly Christmas: A Social History (London: I. B. Tauris & Co Ltd, 2012) problematize esta questão, inclinando-se claramente para uma leitura de continuidade das tradições, e criticando a posição da “invenção da tradição”, de Hobsbawm e Ranger.  
4 Peter Ackroyd, Dickens, London, Minerva, 1993, p.436.
5 Citado por Michael Slater, em Charles Dickens: A Chrismas Carol and Other Christmas Writings, with Introduction and Notes by Michael Slater, London: Penguin Books, 2003, p. [xi] A fonte de Slater é o artigo “Dickens and “Father Christmas”. A Yule-tide Appeal for the Babes of Famine Street”, The Nineteenth Century, vol. 62, July-December 1907, pp. 1014-29. Em nota, p. xxviii, Slater refere: “Watts-Dunton describes the girl as representative of ‘thousands of the London populace who never read a line of Dickens … but who were nevertheless familiar with his name’ and who looked upon him ‘as the spirit of Christmas incarnate; as being, in a word, Father Christmas himself”.
6 Em Michael Slater, p. xxi e Ackroyd, p. 566.  
7 Charles Dickens, A Christmas Carol and Other Christmas Writings, with Introduction and Notes by Michael Slater, London, Penguin Books, 2003, p. 231. Todas as citações dos contos de Natal de Dickens serão referidas a esta edição, que passará a ser designada, em nota, por A Christmas Carol.  
8 Memoirs and Correspondence of Field-Marshal Viscount Combermere, 2 vols., London, 1866, ii, 419, in Christopher Hibbert, Queen Victoria: A Personal History. London: Harper Collins, 2000, p. 158 nota.
9 Idem.
10 Quando Scrooge visita o sobrinho no dia de Natal depara-se com a seguinte cena: “They were looking at the table (which was spread out in great array); for these young housekeepers are always nervous on such points, and like to see that everything is right”. A Christmas Carol, p. 115.
11 “A Christmas Tree”, in A Christmas Carol, p. 231.  
12 Asa Briggs, Victorian Things. Chicago, The University of Chicago Press, 1989, p. 364.
13 A Christmas Carol, p. 81.
14 Id., p. 113.  
15 Mrs. Beeton, Mrs. Beeton’s Book of Household Management. Abridged edition. Edited with an Introduction and Notes by Nicola Humble. Oxford, Oxford University Press, 2000, pp. 225-6. Como é referido na Introdução, esta obra é o livro de cozinha inglês mais popular de sempre. Em 1861, quando teve a primeira edição, vendeu mais de 60.000 exemplares. Em 1868 já tinha vendido mais de dois milhões.
16 Mrs. Beeton, p. 38.
17 A Christmas Carol, p. 81.  
18 In Tea Holme, The Carlyles at Home, illustrated by Lyntton Lamb. Oxford, Oxford University Press, 1979, p. 33-34.
19 “I do not remember that I have ever sustained a moment of greater embarrassment in life … than yesterday when Helen suggested to me that I had better stuff the turkey – as she had forgotten all about it! I had never known “about it”! But as I make it a rule never to exhibit ignorance on any subject devant les domestiques for fear of losing their respect – I proceeded to stuff the turkey with the same air of calm self dependence with which I told her some time ago, when she applied to me, the whole history of the Scotch free-church dissentions – which up to this day I have never been able to take in!”, id., p. 34.
20 A Christmas Carol, pp. 62-63.
21 “Jane Welsh Carlyle was also there and told a friend, “Only think of that excellent Dickens playing the conjuror for one whole hour – the best conjuror I ever saw…”. In Ackroyd, p. 437.
22 In Virgina Surtees Jane Welsh Carlyle, Wilton, Salsbury: Michael Russell, 1986, p. 176.
23 Negus era uma mistura de vinho e água quente adoçada e aromatizada com limão e especiarias, com o nome do seu criador, Coronel Negus (falecido em 1732). In A Christmas Carol, p 63 e 278.
24 Bishop era uma bebida feita com vinho tinto quente, deitado por cima de laranjas amargas, e que se adicionavam açúcar e especiarias, que ficava com cor roxa. In A Christmas Carol, p. 65 e 281.
25 Ver Mrs. Beeton, pp. 354-355.  
26 In A Christmas Carol, p. 247
27 In A Christmas Carol, p. 204.  
28 A Christmas Carol, p. 227.
29 O livro seria publicado em 1934, por decisão de um dos filhos de Dickens e com o consentimento da restante família. Está on-line, graças a um bisneto (trineto de Charles Dickens), e pode ser lido em http://www.chucknorris.com/Christian/Christian/ebooks/dickens_life.pdf A citação é extraída da versão on-line.  

Fonte: FARIA, Maria Luísa Leal de. A invenção do Natal. Gaudium Sciendi, n. 5, dez. 2013, p. 91-103. 

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