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Leandro Vilar

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Literatura negra: uma voz quilombola na literatura brasileira


Literatura negra: uma voz quilombola na literatura brasileira


Conceição Evaristo
Doutoranda em Literatura Comparada
Universidade Federal Fluminense –  UFF


Ao propormos uma leitura em torno da Literatura negra, julgamos necessária mesmo que ligeira, uma reflexão sobre a transposição e a continuidade das culturas africanas em solo brasileiro.

O primeiro exercício de sobrevivência efetuado pelos africanos deportados no Brasil, assim como em toda diáspora, foi talvez o de buscar recompor o tecido cultural africano que se desteceu pelos caminhos, recolher fragmentos, traços, vestígios, acompanhar pegadas na tentativa de reelaborar, de compor uma cultura de exílio refazendo a sua identidade de emigrante nu. (GLISSANT, 1996)1.

O homem africano no movimento de reterritorialização encontra no culto da tradição a possibilidade de viver um continuum apesar de espaço e tempo históricos diferentes. Tradição que para Muniz Sodré (1988)2.

Afirma-se não como forma paralisante, mas como algo capaz de configurar a permanência de um paradigma negro na continuidade histórica.”

Para Edouard Glissant, o emigrante nu, ainda que despojado de tudo, principalmente de sua língua, recompõe, entretanto a partir de vestígios, a sua cultura. Essa recomposição par traces, tratada por Glissant3, é também destacada por Wilson Barbosa (1994) que vê a cultura negra brasileira guardando “grande parte dos instrumentos materiais da cultura africana ainda vivos embora simplificados.” Barbosa exemplifica informando que na África existem sete tipos de gunga ou berimbau, no Brasil, porém, só sobrevive um. Os sete berimbaus africanos guardam significações diferentes entre si, relacionadas a entidades e estados grupais diversos. A quantidade de instrumentos, e a função diferencial de cada um, deixaram de existir na América, porque, ao juntarem-se as variadas culturas africanas, surgiu “um novo significado, uma nova leitura para um conceito síntese.”  E o autor continua:

“(...) pode-se esquecer as formas sagradas do berimbau, mas não se perde o berimbau, e a sua função convocatória. Se a Cultura não pode se reproduzir pelo seu máximo, ela reproduzirá pelo seu mínimo, mas ela ainda será produzida".

É interessante notar o aspecto provocativo de uma cultura que se reprime, ela se reduz, mas ao mesmo tempo, se concentra: ela caminha por uma centralidade, diminui os seus gestos expansivos, mas mantém-se por gestos essenciativos. 5

O africano, emigrante nu, trazido como escravo, tendo perdido o seu território físico, ao chegar na diáspora, busca a reterritorialização no terreiro. Vai ser nesse espaço “território político-mítico-religioso” que o patrimônio simbólico do africano e seus descendentes vai encontrar o seu lugar de transmissão e preservação, conforme pontua Muniz Sodré. (1988)6.

“O espaço do terreiro vai ser o lugar de reterritorialização de uma cultura fragmentada, de uma cultura de exílio. É ali que o indivíduo vai reviver, vai tentar refazer a sua família, e o seu clã, que tal como na África, são formados independentemente de laços sanguíneos  No espaço do terreiro, o indivíduo buscará o sentido de pertencimento a uma coletividade e ritualisticamente vai reencontrar a sua nação".

O terreiro vai induzir em seus filhos posturas, comportamentos, assunções de outras coletividades. Várias criações como os afoxés, congadas, maracatus, folias, grupos de samba podem ser reconhecidas como “desdobramento das matrizes simbólicas dos terreiros, conforme atesta Muniz Sodré.

Com relação aos terreiros, qualquer denominação que recebam, candomblé, Xangô, pajelança, Jurema, catimbó, tambor de mina, umbanda, Muniz Sodré pontua que:

“Em qualquer deles, entretanto permaneceu ainda hoje o paradigma – um conjunto organizado de representações litúrgicas, de rituais nagô – mantidos em sua maior parte pela tradição Ketu.”7

O terreiro é visto como um quilombo, por Marco Antônio Chagas Guimarães em sua Dissertação de Mestrado, em Psicologia, sobre a construção de identidade em comunidade de terreiro.

“(...) Foram e ainda são quilombos as comunidades de terreiro que ao longo da história do negro no Brasil mostraram ter sido o lócus de engendramento por suas características especiais de útero mítico, que possibilitou a reaglutinação dos elementos fundamentais para a manutenção do negro enquanto grupo e cultura.”8

 A Mística do Quilombo na Literatura Negra Brasileira


A palavra poética é um modo de narração do mundo. Não só de narração, mas talvez, antes de tudo, de revelação do utópico desejo de construir um outro mundo. Pela poesia, inscreve-se, então, o que o mundo poderia ser. E, ao almejar um mundo outro, a poesia revela o seu descontentamento com uma ordem previamente estabelecida.

Para determinados povos, principalmente aqueles que foram colonizados, a poesia torna-se um dos lugares de criação, de manutenção e de difusão de memória, de identidade. Torna-se um lugar de transgressão ao apresentar fatos e interpretações novas a uma história que antes só trazia a marca, o selo do colonizador. É também transgressora ao optar por uma estética que destoa daquela apresentada pelo colonizador.

Pela poesia, o colonizado, segundo Homi Bhabha, não só encena o “direito de significar” como também questiona o direito de nomeação que é exercido pelo colonizador sobre o próprio colonizado e seu mundo. (BHABHA, p. 321).

Viver a poesia em tais circunstâncias, de certa forma, é assegurar o direito à fala, pois pela criação poética pode-se ocupar um lugar vazio apresentando uma contra-fala ao discurso oficial, ao discurso do poder.

Nas sociedades ágrafas, a poesia conta/canta a tradição, os mitos de fundação, as histórias, os provérbios, a sabedoria. O canto poético planta e rega a memória coletiva.

A poesia oral, presente nas culturas tradicionais africanas, foi incorporada à literatura produzida pelos poetas, contistas e romancistas africanos comprometidos com a luta de libertação do povo. A poesia foi arma, foi estratégia de luta.

No Brasil, podemos encontrar, sobretudo na voz dos descendentes de africanos, uma poética que rememora a Mãe África, denuncia a condição de vida dos afro-brasileiros, e, nas últimas décadas, apresenta-se afirmando um sentimento positivo de etnicidade.

Tendo sido o corpo negro, durante séculos, violado em sua integridade física, interditado em seu espaço individual e social pelo sistema escravocrata do passado e, hoje ainda por políticas segregacionistas existentes em todos, se não em quase todos, os países em que a diáspora africana se acha presente, coube aos descendentes de africanos, espalhados pelo mundo, inventar formas de resistência. Vemos, pois, a literatura buscar modos de enunciação positivos na descrição desse corpo. A identidade vai ser afirmada em cantos de louvor e orgulho étnicos, chocando-se com o olhar negativo e com a estereotipia lançados ao mundo e às coisas negras.

O corpo negro vai ser alforriado pela palavra poética que procura imprimir e dar outras re-lembranças às cicatrizes das marcas de chicotes ou às iniciais dos donos-colonos de um corpo escravo. A palavra literária como rubrica-enfeite surge como assunção do corpo negro. E como quelóides –  simbolizadores tribais – ainda presentes em alguns rostos africanos ou como linhas riscadas nos ombros de muitos afro-brasileiros – indicadores de feitura nos Orixás – o texto negro atualiza signos-lembranças que inscrevem o corpo negro em uma cultura específica.

Preocupações surgem quanto ao termo literatura negra, pois há a argumentação de que a arte é universal, não tem fronteiras. Sim, mas dentro dessa universalidade, há o particular, há o específico, há no caso, da literatura negra, a identidade étnica e cultural, revelando-se em momentos discursivos quando se busca uma ação afirmativa, construída pela palavra literária, e que dá um sentido positivo à etnicidade negra.

Luiza Lobo, (1989)9 ao procurar conceituar o que seria literatura negra, levanta o dado étnico, que em sua definição é marca substancial. Pontua que a existência da literatura negra se dá a partir do momento em que o negro deixa de ser somente tema, deixa de ser objeto para uma literatura alheia e passa a criar a sua própria, assumindo o papel de sujeito. Para ela, essa mudança de posição, de papel, define o surgimento da literatura negra no Brasil.

“Um dos aspectos primordiais que ao meu ver define a literatura negra, muito embora não seja um elemento norteador, em geral, dos estudos sobre o assunto, é o fato de a literatura negra do Brasil – ou afro-brasileira – ter surgido quando o negro passa de objeto a sujeito dessa literatura e cria a sua própria história; quando o negro visto geralmente de forma estereotipada, deixa de ser tema para autores brancos para criarem sua própria escritura no sentido de Derrida: a sua própria visão de mundo. Só pode ser considerada literatura negra, portanto, a escritura de africanos e seus descendentes que assumem ideologicamente a identidade de negros”(1988).10

Zilá Bernd indaga11: “que fator será o determinante da fissura a partir da qual se pode falar em literatura negra e não apenas em temática da escravidão?

E responde:

“que esse demarcador de fronteiras é o surgimento de um sujeito de enunciação no discurso poético, revelador de um processo de conscientização de ser negro entre brancos”.12 

Reafirmando que não é somente a cor da pele do escritor que vai definir, situar o seu texto como literatura negra, mas também a sua postura ideológica, a maneira como ele vai viver em si a condição e a aventura de ser um negro escritor, concordamos com Márcio Barbosa, (1985)13 quando o escritor do Quilombhoje diz que a “existência da literatura negra é posterior à existência de uma consciência negra”.

Márcio Barbosa, tomando como referencial de negro escritor o poeta Cruz e Sousa, impõe e responde a questão: “Pode-se falar de uma literatura negra?”

Tomamos o caso específico da poesia: Cruz e Sousa entra para a história da literatura, entra como um escritor que, por casualidade, era negro. O fato de ser negro nunca foi nos apresentado pela história como condição essencial e anterior à sua condição de escritor. A diferença é fundamental: a anterioridade da condição de escritor lhe determina um papel social diferente daquele que seria determinado pela anterioridade da condição de ser negro. A anterioridade de ser um escritor (que por acaso era negro) lhe dá uma especificidade que tem a ver com o papel social dos demais escritores. A anterioridade da condição de ser negro (por acaso escritor) lhe daria uma especificidade que teria a ver com o papel social dos demais negros. O fato de ser escritor lhe garante uma universalidade em que as demais coisas lhe aparecem como qualidades adicionais.

O fato de ser negro lhe daria uma particularidade que o envolveria nas responsabilidades do seu presente político, na sua especificidade cultural enquanto oprimido. Esta diferença é, sobretudo, temporal e gerada por uma opção consciente. Uma opção que depende unicamente do escritor e seu direcionamento aos problemas do grupo social é que vai defini-la. Por isso a existência de uma li-teratura negra é posterior à existência de uma consciência negra. 14

A literatura negra apresenta um forte teor ideológico, pelo fato de lidar, de tomar como pano de fundo e de eleger como sua temática a história do negro, a sua inserção e as relações étnicas da sociedade brasileira.

Há muito tempo que a literatura negra se insinua na literatura brasileira. Otavio Ianni (1988)15 aponta Luís Gama (1830-1882), Cruz e Souza (1861-1898), Lima Barreto (1881-1922) e, até mesmo, o polêmico, no que se refere à sua assunção como negro, Machado de Assis, como vozes precursoras de um discurso literário negro. Uns se revelando de forma patente, outros, de maneira latente, mas onde é possível perceber a condição negra em seus textos.

A literatura negra tem o negro como protagonista do discurso e protagonista no discurso, –  “sujeito que produz e que está reproduzido naquilo que produz”.16 

Quando falamos de sujeito na literatura negra, não estamos falando de um sujeito particular, de um sujeito construído segundo uma visão romântico-burguesa, mas de um sujeito que está abraçado ao coletivo.

O sujeito da literatura negra tem a sua existência marcada por sua relação, e por sua cumplicidade com outros sujeitos. Temos um sujeito que, ao falar de si, fala dos outros e, ao falar dos outros, fala de si. (ORLANDI, 1988)17

A voz do poeta não é uma fala única, solitária, mas a ressonância de vozes plurais. Realiza a fusão Eu/Nós, apresentando uma das características da literatura menor, apontada por Deleuse e Guatarri: “Tudo adquire um valor coletivo”.18

A literatura negra nos traz a revivência dos velhos griots africanos, guardiões da memória, que de aldeia em aldeia cantavam e contavam a história, a luta, os heróis, a resistência negra contra o colonizador. Devolve-nos uma poética do solo, do homem africano, transplantada, reelaborada nas terras da diáspora.

O que caracteriza uma literatura negra não é somente a cor da pele ou as origens étnicas do escritor, mas a maneira como ele vai viver em si a condição e a aventura de ser um negro escritor. Não podemos deixar de considerar que a experiência negra numa sociedade definida, arrumada e orientada por valores brancos é pessoal e intransferível. E, se há um comprometimento entre o fazer literário do escritor e essa experiência pessoal, singular, única, se ele se faz enunciar enunciando essa vivência negra, marcando ideologicamente o seu espaço, a sua presença, a sua escolha por uma fala afirmativa, de um discurso outro –  diferente e diferenciador do discurso institucionalizado sobre o negro –  podemos ler em sua criação referências de uma literatura negra.

David Brookshaw (1983), reconhece que os escritores negros podem produzir internalizando e defendendo estereótipos contra eles mesmos, todavia faz uma ressalva:

“(...) O aspecto importante a emergir da obra dos escritores negros, como veremos, é que, embora possam defender e mesmo internalizar estereótipos criados pela tradição branca a respeito deles,suas obras raramente limitam-se a isso, mas inevitável e desejavelmente, transmitem um conhecimento mais íntimo da posição do negro na América Latina e uma perspectiva mais pessoal e honesta de suas aspirações.”19

Apropriar-se de sua história e de sua cultura, reescrevê-la segundo a sua vivência, numa linguagem que possa ser libertadora, é o grande desafio para o escritor afro-brasileiro. Ele escreve, se comunica através de um sistema linguístico que veio aprisioná-lo também, enquanto código representativo de uma realização linguística da cultura hegemônica.

O predomínio da língua portuguesa, conforme expõe Alberto Musa (1990)20, tomando como exemplo o caso brasileiro, marcou seus efeitos, desde o início da colonização, já que era o idioma de quem mantinha o poder político-econômico. A preponderância da língua do colonizador se fará notar em relação às línguas indígenas e africanas, utilizadas nas comunicações intergrupais das várias etnias que aqui aportaram. A língua portuguesa significava a continuidade de um estado de poder, guardando também um status superior na hierarquia das línguas. A sua assimilação servia para diminuir a capacidade de um levante da população escrava e dificultava a construção de um compromisso ideológico entre os africanos e os seus primeiros descendentes já nascidos no Brasil.

Apesar da comunidade negra brasileira ter perdido quase toda a referência das línguas africanas, com exceção de adeptos do candomblé, a produção literária negro-brasileira se aproxima ora mais, ora menos de uma expressividade oral, herança das culturas africanas no solo brasileiro. Oralidade que garantiu a nossa memória e se presentifica na escrita afro-brasileira.

Luiza Lobo (1987), ao analisar textos de literatura negra brasileira, tem um parecer sobre oralidade presente nessa produção.

“A diferença entre o escrito e o falado, entre o significado lógico e o sentido pragmático que tem marcado toda cultura ocidental, notadamente o Primeiro Mundo, tem sido conscientemente abandonada pelos escritores de origem africana, até mesmo na tentativa de encontrar um universo simbólico discursivo próprio.”21

A literatura negra brasileira, ao apresentar um discurso outro que pretende uma auto-apresentação do negro – discordante de um discurso de representação do negro produzido pela literatura dominante –  vale-se da paródia como maneira de inverter, de subverter um discurso que, muitas vezes, ainda consagra o negro como res, coisa “ex-ótica” e que não cabe no campo de visão de um olhar viciado, limitado, que não compreende a alteridade, a não ser por um juízo de valor.

O discurso paródico da literatura negra, por meio de um enfrentamento ideológico, desenha novos caminhos, novos contornos para a alteridade negra, redefinindo o lugar da diferença.

A paródia como a “intertextualidade das diferenças” (Afonso Romano de Sant’Anna, 1991)22 torna-se um excelente recurso para uma literatura que se faz na “contramão”23, nos interstícios de uma outra, que brota dos lugares de um suposto silêncio e que vem virando pelo avesso, comendo pelas beiradas um discurso que já se sacramentou a respeito do negro.

Como apropriação de um discurso alheio, a paródia se torna o pulo do gato da literatura negra, quando o texto negro-brasileiro consegue quebrar violentamente o “espelho”24 no qual fingidamente começou a se contemplar, ou quando constrói uma invertida imagem.

A transgressão oferecida pelos textos paródicos da literatura negra-brasileira pode ser observada nos textos em que a palavra literária vem reconstruindo a história. A literatura negra toma como parte do corpus a História do povo negro vivida e interpretada do ponto de vista negro, propondo uma leitura transgressora da História oficial e escrevendo a história dos dominados.

Reverter os valores, introduzir personagens na história, dar-lhes um espaço/ tempo e uma outra movimentação a partir de uma ótica e de uma criação próprias, encontrar seus heróis e construir uma épica negra é uma das constantes que pode ser observada na literatura negra.

A saga Palmarina vai ser sempre retomada. Mulheres como Dandara, Luiza Mahin, Aqualtume serão temáticas do canto poético negro.

Abdias Nascimento (1980) partindo do modelo de organização quilombola formula uma espécie de “práxis afro-brasileira –  o quilombismo”, que pode ser reconhecida nos vários tipos de organizações coletivas negras. Essa práxis afro-brasileira nascida nos quilombos, pontos de resistência ao sistema escravagista, de certa forma vai estar presente em “outros focos de resistência física e cultural” ao longo da história do negro brasileiro, como nas irmandades religiosas, clubes, terreiros, escolas de samba etc.25,  desempenhando um papel relevante na sustentação da continuidade africana” (p.225).  Há uma mística quilombola latente ou patente, como forma defensiva e afirmativa do negro, na sociedade brasileira.  A retomada do nome Quilombo e/ou Palmares em várias organizações do passado, e ainda no presente, aponta para o significado da ação quilombola como um paradigma de organização social entre os negros brasileiros.  Abdias Nascimento acrescenta ainda:

“Com efeito, o quilombismo tem se revelado fator capaz de mobilizar disciplinarmente as massas negras por causa do profundo apelo psicossocial cujas raízes estão entranhadas na história, na cultura e na vivência dos afro-brasileiros.”26

Há uma “idéia-força” advinda do modelo quilombista que promove uma “reatualização” do quilombismo nas afirmações afro-brasileiras. Há “um ideal forte e denso que via de regra permanece reprimido pelas estruturas dominantes” podendo também passar por um processo de sublimação pelos mecanismos de defesa do inconsciente individual ou coletivo, afirma ainda o estudioso e político afro-brasileiro (p.256).

A historiadora Beatriz Nascimento27, também destaca a organização quilombola, como paradigma organizativo de estratégias afirmativas dos negros que foram trazidos para as Américas.

Após a Abolição, a mística quilombola interiorizou-se nos descendentes livres de africanos. Não mais como uma mística de “guerra bélica declarada, mas como esforço de combate pela vida”.  A força vital, experimentada pelo jovem que se iniciava no Kilombo, componente do sistema filosófico bantu, está no modo de ser do brasileiro.  “A aparente aceitação das dificuldades”, diz a estudiosa da temática, fundamenta-se nesta filosofia, mas é preciso fortalecer o corpo e a mente como instrumentos de luta.28 As religiões afro-brasileiras, tanto as de origem bantu como as de fundamento nagô operam com “essa força vital, máquina-de-guerra existencial e física.29 A religião marca o adepto como no quilombo ancestral quando ele era marcado por ritos de iniciação.

Ao apropriar-me do conceito de quilombismo proposto por Abdias Nascimento e por Beatriz Nascimento, acrescento um outro aspecto talvez implícito nas considerações dos dois estudiosos. Enfatizo a diferença entre quilombo e gueto. Aprofundo aqui um pensamento de Mirian Alves30, quando a poetisa afro-brasileira diz que enquanto gueto supõe impotência, quilombo traz em si a ideia de resistência, de organização.

Podemos pensar o quilombo como um espaço de vivência marcado pelo enfrentamento, pela audácia de contradizer, pelo risco de contraviver o sistema.

O quilombo não garantia ao escravo a liberdade. Era escravo e escravo fugido redo-brando assim a sua exclusão social. O quilombola era o marginal, o fora-da-lei, como ob-serva Zila Bernd31. (1988, p.80).

Distingo ainda quilombo de senzala, porque quilombo é um lugar de escolha, senzala, como gueto, guarda um sentido de lugar vivido por imposição. Entretanto, a senzala subverte também a ordem, na medida em que é a oposição da casa-grande, constituindo-se um pólo ameaçador.

A mística do quilombo vai estar presente em várias criações da literatura negra brasileira. O fato-símbolo da resistência negra, Quilombo dos Palmares, vai ser reverenciado. Zumbi é o herói e a vítima do cotidiano.

Interessante observar que Lima Barreto, um dos precursores da literatura negra, nomeia o seu espaço particular, a sua casa, o seu referencial familiar como “Vila Quilombo”, conforme assinala Regis de Morais (1983)32. Poderíamos pensar em uma reapropriação de um território cultural, nomear negramente seu mundo.

A literatura negra brasileira não está desvencilhada das pontuações ideológicas do Movimento Negro. E embora durante quase todo o processo de formação da literatura brasileira existissem vozes negras desejosas em falar por si e de si, a expressividade negra vai ganhar uma nova consciência política sob inspiração do Movimento Negro, que volta para a reafricanização, na década de 70. O Movimento de Negritude, no Brasil, tardiamente chegado, vem misturado aos discursos de Lumunba, Black Panter, Luther King, Malcon X, Angela Davis e das Guerras de Independência das colônias portuguesas. Esse discurso é orientado por uma postura ideológica que levará a uma produção literária marcada por uma fala enfática, denunciadora da condição do negro no Brasil, mas igualmente valorativa, afirmativa do mundo e das coisas negras, fugindo do discurso produzido nas décadas anteriores carregado de lamentos, mágoa e impotência.

A literatura negra não é feita só de banzo; para isso o samba existe. O corpo esteve escravo, mas houve e sempre há a esperança de quilombo.

Na Literatura Negra, encontramos um canto nascido no novo Ayê, na nova terra. E, na “História para ninar Cassul-Buanga”, de Nei Lopes (1996)33, ouvimos na voz da diáspora uma louvação à chegada, ao trabalho, à resistência e à fundação de um novo mundo. O poeta canta para que a memória não se aparte de nós.

História para ninar Cassul-Buanga
(com acompanhamento de marimbas)

Um dia, Cassul-Buanga, alguns chegaram:
A pólvora no peito, uma bússola nos olhos
E as caras inóspitas vestidas de papel.

Vieram numa nau de velas caras,
Bordadas de Cifrões.
Suas mãos eram de ferro
E falavam um dialeto
De medo e ignorância.

E fomos.
Amontoados, confundidos, fundidos, estupefatos
Nossas dignidades eram dadas mar atrás
Aos peixes.

Chegamos:
Nosso suor foi o doce sumo de suas canas
nós bagaços
Nosso sangue eram as gotas de seu café
 nós borras pretas.
Nossas carapinhas eram nuvens de algodão,
Brancas,
Como nossas negras dignidades
Dadas aos peixes.
Nossas mãos eram sua mão-de-obra
Mas vivemos, Cassul. E cantamos um blue!
E na roda um samba
De roda
Dançamos.
Nossos corpos tensos

Nossos corpos densos
Venceram quase todas as competições.
Nossos poemas formaram um grande rio.
E amamos e nos demos.
E nos demos e amamos.
E de nós fêz-se um mundo.

Hoje, Cassul, nossas mulheres
 os negros ventres de veludo-
Manufaturam, de paina, de faina
Os travesseiros
Onde nossos filhos,
Meninos como você, Cassul-Buanga,
Hão de sonhar um sonho tão bonito...
Porque Zâmbi mandou. E está escrito.

Notas Bibliográficas:

1. EDOUARD GLISSANT, Introduction à Une Poétique Du Divers, Paris, Editions, Gallimand, 1996, p.15.
2. MUNIZ SODRÉ , O Terreiro e a Cidade, Petrópolis, Vozes, 1988, p.56.
3. EDOUARD GLISSANT, Introduction à Une Poétique Du Divers, p.16.
4. WILSON BARBOSA, Atrás do Muro da Noite, Brasília, Fundação Cultural Palmares, 1994, p.31.
5 Idem, p.31.
6. MUNIZ SODRÉ, O Terreiro e a Cidade, p.50.
7. Idem, p.51.
8 MARCOS ANTÔNIO GUIMARAES, É um Umbigo, não é? A Mãe-criadeira: um estudo sobre o processo de construção de identidade em comunidade de Terreiro – Dissertação de Mestrado. PUC/RJ, 1990, p.24.
9. LUIZA LOBO, “A Pioneira Maranhense Maria Firmina dos Reis” in Estudos                      Afro-Asiáticos, RJ -  nº 16 - 1989, p.91.
10. Idem., p. 91.
11. ZILÁ BERND,  Introdução à Literatura Negra, São Paulo, Brasiliense, 1988, p.48.
12. Idem, p.48.
13. MARCIO BARBOSA, “Questões sobre Literatura Negra” in Reflexões sobre a Literatura Afro-Brasileira, Quilombhoje, São Paulo, Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo, 1985, p.51.
14. Idem, pp 50-51.
15. OTÁVIO IANNI, “Literatura e Consciência” in Estudos Afro-Asiáticos, RJ, nº 15, 1988, p. 208, 209.
16. ENI PULCENELLI ORLANDI, “Incompletude do Sujeito” in Sujeito e Texto, São Paulo/PUC/1988, p.11.
17. Idem, p.15.
18. GUATARRI, F. & DELEUSE, Kafka: Por uma Literatura Menor, 1977, p.25.
19. DAVID BROOKSHAW,  Raça e Cor na Literatura Brasileira, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1983, p. 145, 146.
20.ALBERTO BAETA NEVES MUSA, “Origens da Poesia Afro-Brasileira: Condicionamentos Lingüísticos in Estudos Afro-Asiáticos nº 19, 1990, p.56.
21. LUIZA LOBO, “Literatura Negra Brasileira Contemporânea“ Estudos Afro-Asiáticos nº 14, 1987, p.116.
22. AFONSO ROMANO DE SANT’ANNA, Paródia, Paráfrase & Cia, São Paulo, Ática, 1991, p.28
23. ZILÁ BERND, Negritude e Literatura na América Latina, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1987, p.17.
24. AFONSO ROMANO DE SANT’ANNA, Paródia, Paráfrase & Cia, p.32.
25. ABDIAS NASCIMENTO,  O Quilombismo, Petrópolis, Vozes,  1980, p. 255.
26. Idem, p. 225.
27. BEATRIZ NASCIMENTO, “Kilombo” texto mimeografado, s/d.
28. Idem.
29. Idem.
29. Mirian Alves, poetisa paulista, uma das mais ativas participantes do grupo Quilombhoje Literatura.
30. ZILÁ BERND, Introdução à Literatura Negra, São Paulo, Brasiliense, 1988, p.29.
31. REGIS DE MORAIS, Lima Barreto, São Paulo, 1983, p.17.
32. NEI LOPES, Incursões sobre a Pele, Rio, Artium, 1996, pp 23, 24.

Referências Bibliográficas:

BARBOSA, Marcio, “Questões sobre Literatura Negra”. In: Reflexões sobre a Literatura Afro-Brasileira, Quimlombhoje, São Paulo, Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo, 1985.
BHABHA. K. OMI.  O Local da Cultura, Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999.
BERND, Zilá, Introdução à Literatura Negra, São Paulo, Brasiliense, 1988.
___________, Negritude e Literatura na América Latina, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1987.
BRITO, Maria da Conceição Evaristo de, “Literatura Negra: Uma poética de nossa afro-brasilidade. Dissertação de Mestrado, PUC/RJ, 1996.
BROOKSHAW, David. Raça e Cor na Literatura Brasileira, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1983.
GUATARRI, F. & DELEUSE, Kafka: Por uma Literatura Menor. Rio de Janeiro, Imago, 1977.
GLISSANT, Edouard, Introduction à Une Poétique Du Divers. Paris, Editions, Gallimand, 1996.
GUIMARÃES, Marcos Antônio. É um Umbigo, não é? A Mãe-criadeira: um estudo sobre o processo de construção de identidade em comunidade de TerreiroDissertação de Mestrado. PUC/RJ, 1990.
IANNI, Otávio. Literatura e Consciência. In: Estudos Afro-Asiáticos, RJ, nº 15, 1988
LOBO, Luiza. A Pioneira Maranhense Maria Firmina dos Reis. In: Estudos                      Afro-Asiáticos, RJ – nº 16 – 1989.
 ___________. Literatura Negra Brasileira Contemporânea. Estudos Afro-Asiáticos, RJ, nº 14, 1987.
LOPES, Nei. Incursões sobre a Pele, Rio, Artium, 1996, p. 23, 24.
MORAIS, Regis de. Lima Barreto, São Paulo, Brasiliense, 1983.
MUSA, ALBERTO BAETA NEVES. Origens da Poesia Afro-Brasileira: Condicionamentos Lingüísticos. In: Estudos Afro-Asiáticos nº 19, 1990
NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo. Petrópolis, Vozes, 1980.
NASCIMENTO, Beatriz. Kilombo, texto mimeografado, s/d.
ORLANDI, Eni Pulcinelli, Incompletude do Sujeito. In: Sujeito e Texto São Paulo/PUC/1988.
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SODRÉ, Muniz. O Terreiro e a Cidade. Petrópolis, Vozes, nº 14, 1987.



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